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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Occupy Wall Street

A mídia tradicional faz questão de esconder (ou omitir) as movimentações políticas que estão ocorrendo recentemente. Façamos então do nosso jeito e vamos procurar nos informar sobre o que está rolando nos EUA e no mundo. Recebi por e-mail de uma professora minha aqui da UFBA o seguinte texto, que posto agora na integra:

Slavoj Zizek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao
acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall
Street), que vem protestando contra a crise financeira e o poder econômico
norte-americano desde o início de setembro deste ano.



Tradução: Rogério Bettoni


Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo
aqui. Carnavais custam muito pouco - o verdadeiro teste de seu valor é o que
permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana
será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente - somos o início,
não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no
melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em
alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de
enfrentar questões realmente difíceis - questões não sobre aquilo que não
queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode
substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos?
As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a
ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o
lema "Main Street, not Wall Street", mas sim mudar o sistema em que a Main
Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os
inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de
tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem
cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar
isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos
é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de
Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da
Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o
suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho,
depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais
começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito
tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam
terceirizados - mas agora nós os queremos de volta.

Dirão que somos "não americanos". Mas quando fundamentalistas conservadores
nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é
o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis
unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street
eles são pagãos que adoram falsos ídolos.

Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à
ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo
sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos
dar um basta no modo como as coisas andam - mas o que significa essa
violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para
sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?

Seremos chamados de perdedores - mas os verdadeiros perdedores não estariam
lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do
nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já
existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a
propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda
de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas
obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e
noite - pense nas centenas de casas hipotecadas.

Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que
merecidamente entrou em colapso em 1990 - e lembrem-se de que os comunistas
que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos
capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo
comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a
democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido
apenas: nós nos importamos com os bens comuns - os da natureza, do
conhecimento - que estão ameaçados pelo sistema.

Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os
que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo
indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos
sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo.
Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está
gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica
dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua
caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só
começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é
simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo.

Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são
dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da
tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível
(ou pelo menos é o que nos dizem): "nada é impossível", podemos ter sexo em
suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e
seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à
venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas
e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho
tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um
programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e
sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do "você não pode"
se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no
terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos
transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do
mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos
repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não
chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível?
Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que
não somos imortais?

Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia
proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens
no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade
para questões históricas sérias - até mesmo a fuga fictícia para uma
realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental
liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce
poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas
sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o
fim do mundo - vide os inúmeros filmes apocalípticos -, mas não o fim do
capitalismo.

Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador
alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas
correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: "Vamos
combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta
azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa". Depois de um mês,
os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: "Tudo é uma maravilha
por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos
são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres
lindas prontas para um romance - a única coisa que não temos é tinta
vermelha." E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a
liberdade que desejamos - a única coisa que falta é a "tinta vermelha": nós
nos "sentimos livres" porque somos desprovidos da linguagem para articular
nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que,
hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual -
"guerra ao terror", "democracia e liberdade", "direitos humanos" etc. etc. -
são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de
permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos
nós tinta vermelha.






Slavoj Žižek  nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa(ambos de 2011). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

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